Princesas africanas

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 No conto "O casamento da princesa", a chuva e o fogo discutam um lugar ao lado de Abena. 
(Foto: Reprodução/Ilustração Taísa Borges) 

Na tentativa de pensar em outra significação para a palavra princesa, fiz um recorrido nos contos de fadas, nas lendas e em algumas narrativas orientais e ocidentais. Prefiro pensar em uma definição afastada dos ideais tradicionais das grandes realezas, sugiro assim um sentido mais real e, ao mesmo tempo, fantasioso no qual princesas podem ter coroas de papel, caminharem nuas com os rostos pintados no meio da mata, adorar vários deuses, morar na neve, dormir com carneiros, comer formigas ou morar em uma cidade comum em pleno século XXI.


Portanto, princesas são essas meninas que despertam um sentimento especial nos pais. São essas criaturas que fazem os pais se sentirem reis e rainhas com as firulas diárias. São essas crianças que enxergam e transformam uma casa de sapê ou um barraco em um castelo. Afinal, a nossa casa é o nosso castelo. Princesas são esses seres humanos do sexo feminino que nascem todos os dias em milhares de partes do planeta terra. Seres humanos; seres iguais independente de classe social, etnia ou algum tipo de necessidade especial.

Uma vez li que “a fantasia e a poesia da linguagem nos transportam para um país onde tudo pode acontecer. A magia da palavra lida ou ouvida faz existir o sonho, e ao afastar-se do real, permite a margem do mais além, do outro, do impossível, do espelho com suas entradas e saídas secretas” e isso me fez refletir sobre essas denominações tão engessadas que aprendemos ao longo da vida.

Em busca de algumas histórias e princesas africanas encontrei narrativas bem interessantes que me colocaram diante de ancestrais. Foi aí que descobri a princesa Lucy Dinqines (que significa você é maravilhosa) – nome do esqueleto da fêmea hominídea de 3,2 milhões de anos encontrados na Etiópia; é a mais antiga ancestral da humanidade. Li um pouco de Cleópatra, A Rainha de Sabá, Ayesha e algumas outras não menos importantes. No entanto, escolhi para esse post “O casamento da princesa”, um conto popular de Gana e países da África Ocidental.

O Casamento da princesa – versão de Celso Sisto

A beleza andava de mãos dadas com a princesa Abena, pois tinha reunido numa só pessoa um harmonioso pescoço alongado, um rosto arredondado e seios grandes. O rei, seu pai, sorria para si e para o mundo, cada vez que constatava, com os próprios olhos, a formosura da filha. E por isso acreditava que seria fácil casá-la, quando chegasse a hora.
A sucessão dos anos só aumentava a perfeição dos traços de Abena. Além de tudo, ela tinha ainda a ajuda dos magníficos trajes que usava: sempre envolta nos mais belos tecidos e vestimentas; sempre adornada com os mais fulgurantes colares e brincos; sempre emergindo do colorido das roupas, como a mais nobre visão da beleza.

A notícia da suprema graça de Abena circulou pelas tribos, atravessou os mares, subiu aos céus, correu por toda a África tropical. Mas foi só quando os habitantes dos mais distantes povoados começaram a chegar para ver com seus próprios olhos a princesa mais linda do mundo, é que chegaram também os pedidos de casamento. Os primeiros pretendentes à mão da princesa foram o Fogo e a Chuva. A Chuva surgiu de repente, meio às escondidas, usando um kente (traje típico do povo ashanti) único, feito da mais pura seda, especialmente para aquela ocasião. Pedir a mão daquela princesa exigia roupa adequada e padronagem nunca antes vista!

Nem é preciso dizer que Abena encantou-se logo com os modos de seu primeiro pretendente. O olhar molhado, o corpo luzidio, as palavras que rolavam feito água cantante, ficaram ainda mais bonitas nos versos que ele chuviscou nos seus ouvidos: – O olhar do amor fez passear o passarinho que assim baixinho, trouxe água do seu bico até seu ninho… E o pretendente ofereceu ainda mais: – Linda Abena, olhe para adiante, olhe. Daqui até as savanas de Burkina Fasso, até as areias do Golfo da Guiné, até as plantações do Togo, até as florestas da Costa do Marfim, você não encontrará ninguém que seja mais poderoso que a Chuva. Com um simples aceno das mãos, faço crescer as plantações e multiplico as colheitas e as ervas para os rebanhos. Graças a mim, teremos sempre água pura para beber e rios e lagos cristalinos, cheinhos de peixes, onde se pode nadar e pescar.

E as palavras da Chuva soaram tão musicais aos ouvidos de Abena, e seu coração solitário ficou tão refrescado, que ela acabou prometendo-lhe casamento. E pediu-lhe que voltasse no outro dia para acertar os detalhes com o Rei. Acontece que enquanto Abena se comprometia com a Chuva, o Rei, na mesma hora, logo ali, em outro aposento, firmava acordo com o Fogo. Este segundo pretendente tinha também ido pedir a mão da princesa. E da mesma forma que a Chuva, mostrou-se em trajes suntuosos e, com finíssimos modos, apregoou seu poder: – Meu Rei, veja por si mesmo. Daqui atéas savanas de Burkina Fasso, até as areias do Golfo da Guiné, até as plantações do Togo, até as florestas da Costa do Marfim, não haverá ninguém com maior vigor que o Fogo. Minhas chamas mantêm os animais perigosos ao longe, cozinham a comida diariamente, iluminam as intermináveis noites escuras e aquecem o corpo durante a rigorosa estação do frio. Que mais alguém poderia oferecer à sua bela filha? Consinta que eu me case com ela!

O Rei ficou tão impressionado com tal pretendente, e casar a filha durante a colheita do cacau era decisão tão antiga, que acabou por aceitar a proposta! Disse que ia comunicar o trato à princesa e mandou que o Fogo voltasse no dia seguinte,para acertarem os detalhes. Mais tarde o Rei chamou a filha e comunicou-lhe a decisão que havia tomado:
– Encontrei teu futuro marido!
– Como assim, meu pai?
– Prometi ao Fogo que te casarás com ele!
– Com o Fogo? Mas eu prometi à Chuva que me casaria com ela!

Estava armada a confusão! O Rei, preocupado, pôs-se a pensar numa solução para não ter que faltar com sua palavra. A princesa, por sua vez, não queria trair seu coração.- Não podemos quebrar nossas promessas! Sempre foi assim com nosso povo! E assim será! – sentenciou o Rei.Na manhã seguinte, mal a claridade do dia luziu no horizonte, lá estavam o Fogo e a Chuva nas terras do Rei. Vinham certos de que em breve também fariam parte daquilo tudo ali, casando-se com a princesa Abena. Mas um não sabia ainda do outro.
O Rei veio recebê-los, e, sem rodeios, disse que já havia decidido a data para o casamento com sua filha. – O meu casamento com ela? – perguntaram o Fogo e a Chuva ao mesmo tempo! Só então se deram conta de que alguma coisa estava errada.
Mas o Rei apressou-se em dizer: – A princesa Abena se casará com o vencedor da corrida que organizei para o dia do casamento!

A notícia espalhou-se como chuva miúda. A notícia correu como um rastro de fogo. Em toda a África Ocidental não se falava em outra coisa a não ser na tal disputa pela mão da princesa! Havia os que apostavam no Fogo. Era grande o número dos que torciam pela Chuva.
Só a princesa Abena conhecia de antemão o resultado, pois dizia para si mesma que fosse quem fosse o ganhador da corrida, ela só se casaria com a Chuva. Assim ela havia prometido desde o início, assim queria o seu enredado coração.Mas esse segredo, que não podia ser compartilhado com ninguém, fazia-a sofrer, deixava-a triste, murchava sua beleza. Afinal, como ir contra a decisão soberana do próprio pai?
Chegou finalmente o dia marcado. Era dia de festa e toda a aldeia estava enfeitada para a corrida e para a cerimônia do casamento. Todos esperavam o resultado final. O rei deu a partida e a Chuva e o Fogo começaram a correr. Os tantãs faziam vibrar a pele do antílope negro que recobria cada tambor, os chifres e as trombetas espalhavam no ar seus sons, ora estimulando as torcidas, ora impulsionando os concorrentes. Tudo ao redor parecia cantar:
“Quero ouvir os tambores a tocar. Quero sentir os pés dos que dançam…”
O Fogo estava ganhando. Havia no ar um vento que o ajudava a multiplicar as chamas e a alastrar-se rapidamente. Por mais esforço que fizesse a Chuva, suas gotas eram insuficientes para colocá-la na frente. Ao contrário, quanto mais vertia água, mais pesada ficava, e mais terreno perdia!O Fogo foi avançando, deixando para trás apenas as cinzas do que tocava com todo o seu calor e potência. Já era quase o vencedor… Mas no momento da chegada, ali onde já evoluíam as máscaras rituais e o povo se aglomerava, eis que o Céu lançou um imenso rugido. Um trovão, que foi ouvido desde as águas do golfo até as paredes das montanhas, ecoou no ar. E foi o suficiente para, em seguida, desabar o maior aguaceiro de que já se teve notícia. Uma cortina de chuva despencou com a força de uma imensa manada de elefantes correndo pelas savanas, impedindo qualquer um de ver um palmo diante do nariz. Chuva da espessura do mundo, rápida, brilhante, quebrando-se nas folhas, fustigando as pedras, martelando o chão. O Fogo que avançava destemido apagou-se a poucos metros da linha de chegada. E a Chuva enfim foi declarada vencedora!

A princesa Abena, mais feliz do que nunca, atirou-se de braços abertos sob a água celeste e bailou como nunca ninguém vira. Seu corpo inteiro comemorava a vitória da Chuva, inclusive seus olhos. O ritmo dos tantãs, que então batiam mais forte, obrigou todos que ali estavam a entrar na dança, que se estendeu por incontáveis noites.
Daquele dia em diante, o Fogo e a Chuva tornaram-se inimigos mortais. Só uma coisa não teve mais jeito: toda vez que chove forte, as pessoas param o que estão fazendo e põem-se a bailar debaixo da água que cai do Céu, tudo, tudo ainda para comemorar o casamento da princesa.

 

#ficaadica
Você também pode conferir a versão ilustrada!

Por Thamires Assad

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